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Música por José Miguel Wisnik

A música no Brasil desenvolve-se claramente em duas frentes distintas: a tradição escrita (transposta da música européia), também chamada “erudita” ou “de concerto”, e a tradição não-escrita (resultante das misturas entre músicas européias, indígenas e africanas), correspondendo às múltiplas formas da música popular. Ambas apresentam desenvolvimentos próprios e, como também acontece em muitos outros países, cruzam-se em certos momentos. No Brasil esses encontros entre o popular e o erudito têm, no entanto, uma importância específica, pois neles está, sem dúvida, uma das marcas singulares da produção musical brasileira.

O primeiro documento do contato entre portugueses e índios em solo da América, a carta do escrivão Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal, em 1500, registra em certo momento a mistura musical de europeus e nativos ao som da gaita. A catequese jesuítica, a partir do primeiro século da colonização, fez apelo à música, promovendo a combinação entre elementos da música e dança tribais com cantos e instrumentação ligados a um teatro religioso de fundo medieval, combinação que está na origem de muitas das festas e danças populares que resistiram ao longo do tempo.

Na Bahia do século XVII, segundo consta, Gregório de Matos, o maior poeta brasileiro do período barroco, circulava a certa altura de sua vida pela região de Salvador entoando versos cantados.

Já no século XVIII, as primeiras manifestações da modinha e do lundu apresentam certo vezo sincopado, certa malemolência melódica e certa sensualidade, entre implícita e explícita, que aparecem a viajantes europeus como traços inequívocos de uma sensibilidade própria. As características desses dois gêneros musicais antecipam de certo modo a canção dolente e o samba, que será o gênero por excelência da música popular brasileira moderna. Mas a modinha e o lundu encontram repercussão em Portugal, ainda no século XVIII, através do poeta e padre mulato Domingos Caldas Barbosa (1740? – 1800), que comparece também nas histórias da literatura, num caso representativo de interpenetração entre o oral e o escrito, o erudito e o popular.

Os três compositores mais representativos da música brasileira de tradição escrita, nas várias fases de seu desenvolvimento, são o padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), no fim do período colonial, Carlos Gomes (1836-1896), no período romântico e Heitor Villa-Lobos (1887-1959), no período moderno. José Maurício, que produziu música essencialmente religiosa na época da presença de D. João VI no Brasil, e que antecede imediatamente a Independência, é um padre mestiço (como Caldas Barbosa) que compôs também algumas modinhas. Carlos Gomes, que fez grande sucesso na Europa com a ópera “Il Guarany” (1870), escrita em estilo verdiano, mas com tema indianista, compôs um pouco conhecido conjunto de canções populares antes de sua partida para a Europa. E Villa-Lobos, que era um violoncelista de formação clássica, ambientado nas inovações modernistas da década de 20, conviveu com os músicos populares cariocas, seresteiros, sambistas e “chorões”, convivência que se reflete no ambicioso conjuntos dos “Choros” e das “Bachianas Brasileiras”.

O compositor francês Darius Milhaud, que morou no Brasil no fim da década de 10, chamava a atenção para a música de Ernesto Nazareth (1863-1934), que combinava Chopin e os “pianeiros” populares num conjunto finamente escrito de polcas amaxixadas e maxixes, com traços de habanera, geralmente chamadas por ele de “tangos brasileiros”, que fazem parte da memória popular e passaram a fazer parte também, depois de alguma resistência, do repertório concertístico.

Pode-se dizer que a permeabilidade entre níveis culturais diversos acompanha uma vida social em que as esferas da família e do trabalho sistemático convivem – nas dobras da estrutura escravista – com o trabalho intermitente, a transitoriedade das mancebias e a cultura da festa popular, muitas vezes ambivalentemente sagrada e profana, católica e pagã. A interpenetração entre as esferas da “ordem” e da “desordem”, que o crítico e teórico da literatura Antonio Cândido chamou “dialética da malandragem”, forma o terreno móvel de uma sociabilidade e de uma cultura em que o oral e o escrito, o “erudito” e o “popular”, se rearranjam continuamente de maneira não usual.

Se movimentos de criação da música de concerto traem muitas vezes uma certa ligação com o popular, os desenvolvimentos mais recentes da música popular urbana apontam por sua vez para uma ligação com a música e a literatura escritas que confirmam a dinâmica interativa entre esses níveis.

Antonio Carlos Jobim (1927-1994), o grande compositor da bossa nova, teve seu paradigma de eleição em Villa-Lobos, mesmo que se afastasse da sua formação clássica para compor arranjos para a Rádio Nacional e, finalmente, os sambas e canções que o mundo inteiro conheceu. A produção de Tom Jobim caminha junto com a de João Gilberto (1931-2019), o grande intérprete e moderno recriador do samba, e a de Vinícius de Moraes (1913-1980), poeta reconhecido no âmbito literário desde a década de 30, que migrou para a canção popular no fim dos anos 50. A bossa nova formou uma geração de músicos e letristas ambientados no samba, na tradição literária e mesmo na música de concerto, além de aberta a outras influências, num leque que vai de Jorge Benjor a Roberto Carlos, de Chico Buarque, Edu Lobo e Milton Nascimento a Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Essa tradição constitui a moderna música popular brasileira, sobre a qual atua e intervém o movimento tropicalista no final dos anos 60, através de Caetano Veloso e Gilberto Gil, sobretudo. O tropicalismo coloca frente a frente, através de colagens, de deslocamentos e citações paródicas, os universos da música popular brasileira, do romantismo de massas dito “brega”, da música pop e de experimentos vanguardistas, em diálogo com a literatura, fazendo dessa confluência disparatada de tempos, em que se encontram o artesanal, o urbano-industrial e o pós-pop, um índice da complexidade singular da experiência brasileira no contexto da transnacionalização da cultura.

Obras de cunho mais instrumental abertas ao clássico, ao indígena, ao oriental e ao jazz, como a de Egberto Gismonti, o experimentalismo bricoleur de Hermeto Paschoal, as incursões dodecafônicas de Arrigo Barnabé pelo universo pop urbano bruto, são sinais, também, dessa permeabilidade às diferenças elevada pelo tropicalismo à condição de traço interpretante do Brasil.

Pode-se dizer, em conclusão, que a música brasileira não ocupa um lugar estanque no quadro da mundialização, alinhando-se no campo das culturas nativas e étnicas ou puramente cosmopolitas, mas constitui-se ela mesma num campo de experiência e de criação sobre o devassamento das fronteiras culturais no mundo contemporâneo.

 

 

 

 

 

 

 

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