MATERIAIS COLABORATIVOS

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4.6 – ressurgimentos: a escola de Meira e o ar maior

SARAIVA

00:00  homenagem do poeta ao violão

 

P.C. PINHEIRO

00:00  quando comecei a escrever era fascinado pelo violão

01:39 canções autorais que falam do violão

02:56 violonistas parceiros

03:50 a escola do Meira

SARAIVA

Seu parceiro Raphael Rabello,
com quem você tem uma obra de canções que foram gravadas por Amélia Rabello,
foi uma figura importante para esse principal modo de se tocar violão no Brasil.

P.C. PINHEIRO

Eu conheci o Raphael muito novo, ele tinha uns 16 anos.
Todos viam nele um virtuose, mas eu sabia que tinha ali um compositor em potencial

Eu dizia:
Mas por que você não faz música?
você pega uma canção pra tocar e faz duas em cima.
Seus contrapontos são melodias belíssimas.
E ele:

RAPHAEL RABELLO

“Meu negócio não é compor,
é tocar.”

P.C. PINHEIRO

Mas com o tempo ele foi me ouvindo
até que ele começou a fazer e me mostrar e assim fizemos várias.
Sua irmã, Amélia Rabello, gravou um disco chamado ‘Todas as canções’.
Três das letras são de Aldir Blanc e todas as demais minhas.

Ele foi embora no momento em que atingia seu maior entendimento da composição

SARAIVA

Assumindo essa frente

P.C. PINHEIRO

É, ele tinha uma facilidade de compor incrível,
As melodias sempre brotaram dele,
mas infelizmente ele nos deixou muito cedo…

E como violonista Raphael tem diversos seguidores.

SARAIVA

Ele tem também o mérito de ter enfrentado um momento difícil,
de ressurgimento da linguagem do choro.

 

É notável como o curto período de vida – e a intensa atividade musical – de Raphael Rabello (1962-1995) coincidem com uma significativa revitalização e fortalecimento da linguagem do Choro. Fato que podemos comprovar comparando o cenário musical brasileiro que se configura no século XXI com o descrito nas colocações de Paulinho da Viola, em entrevista gravada 6/3/1974 para o programa MPB Especial – com direção de Fernando Faro – para a TV Cultura de São Paulo.[i]

 

PAULINHO DA VIOLA

00:26  a formação clássica do choro está praticamente desaparecendo

 

Legítimo representante de uma linhagem de chorões, o músico revela a intrínseca conexão entre o choro e o samba. Nessa entrevista, ele, que é tido pelo meio como “Ministro do Samba”, se posiciona como tal sobre como sentiu o impacto e a repercussão que a bossa-nova surtiu no cenário musical brasileiro.

 

PAULINHO DA VIOLA

02:16 excessiva importância ao elemento harmônico

 

De fato, o compositor referencial da bossa-nova, Tom Jobim, posiciona-se sobre esse assunto de uma forma que, aqui posta, ilustra bem a fértil fricção que existe entre as duas vertentes.

 

TOM JOBIM

Minha música é essencialmente harmônica[i]

 

Essa “essência harmônica” da música jobiniana, forjada ao piano e farta em referências da música de concerto européia, transforma sensivelmente o tratamento harmônico que vinha sendo utilizado  anteriormente à bossa-nova[i]. Antes, de um modo geral, o tratamento se baseava na sonoridade do “regional” e se valia dos recursos característicos do samba e choro tradicionais, como, por exemplo, o da “baixaria” do violão de sete cordas. A priorização da harmonia enquanto elemento composicional, que é evidente em Jobim[i], encontra sua expressão violonística no principal intérprete da bossa-nova: João Gilberto.

 

PAULINHO DA VIOLA

03:04  a forma como se tocava violão antes de João Gilberto também é muito bonita

A forma como se tocava violão antes de João Gilberto também é muito bonita.
João é um gênio, um excelente músico mesmo, mas aquilo criou uma “escola”
e depois de 1950 não se tocou mais com baixaria, que eu acho uma coisa muito bonita.

Eu acho que esse tipo de equívoco implica um certo fechamento.
É a única coisa que eu não concordo muito com a bossa-nova,
mas eu acho que é legal.

 

Hoje, 40 anos após a gravação dessa entrevista, o quadro descrito acima por Paulinho da Viola se inverte. O choro, articulado com o samba, atravessa um período de clara revitalização, sendo amplamente praticado pelas novas gerações de músicos em todas as regiões do país, e se fazendo cada vez mais presente também no resto do mundo. E esse processo deve muito à atuação de Raphael Rabello, personagem que nos leva de volta à entrevista com Paulo César Pinheiro.

 

P.C. PINHEIRO

Raphael fez do 7 cordas um instrumento de concerto,
pois até então era apenas de estúdio,
para gravar samba, choro e tal como acompanhante,
belíssimamente, dentro do que é a escola do Dino.

Com o Raphael ele tomou um “ar maior”
de importância de concerto

SARAIVA

Violão solista.

P.C. PINHEIRO

Ele fez diversos concertos pelo mundo afora tocando 7 cordas.
Então, ele valorizou de tal forma o instrumento que o tirou de onde ele estava…

SARAIVA

dessa função primeira …

P.C. PINHEIRO

… para essa função maior
do solo, do violão de concerto.
Graças ao Raphael.

 

Essa compreensão de um “violão de concerto” associada à ideia de um “ar maior”, que não deixa de revelar alguma contrapartida de “rebaixamento”, surge mesmo na escuta desse que é um dos artistas mais comprometidos com a música profunda e essencialmente popular praticada no Brasil. Esse desejo de o músico popular se fazer presente em ambientes tradicionalmente ligados à música erudita tanto clama pela legitimação de práticas populares – tais como habitualmente são exercidas –, quanto aponta para a atuação artística que se desenvolve no limiar dessas esferas. Atuação que “sinaliza a permeabilidade constitutiva da música praticada no Brasil”, conforme observa José Miguel Wisnik:

Esse movimento cruzado de encontros entre o popular e o erudito sinaliza a permeabilidade constitutiva da música praticada no Brasil, ao mesmo tempo que denuncia o fato de que a tradição não-escrita pode, muitas vezes, desdobrar-se nas franjas da tradição escrita, ou ter a escrita como instrumento de desenvolvimento. (WISNIK, 2004)

Márcia Taborda, referenciando-se no historiador Peter Burke, também estimula a iniciativa de estudos dedicados à música brasileira que, “reconhecendo a dicotomia” cultural, concentrem-se na “interação” entre as esferas culta e popular.

É preciosa a contribuição do historiador Peter Burke, no estudo dedicado à cultura popular. Reconhecendo por um lado dicotomia cultural, por outro troca e reciprocidade, o historiador observa que a atenção dos estudiosos deveria concentra-se na interação e não na divisão entre culturas (…) É sobretudo enriquecedora, por abolir a construção em que processos de interação eram encarados pela ótica da deformação, da distorção, do rebaixamento (ou a contrapartida da ascenção), conceitos que permearam a grande maioria dos estudos dedicados à música brasileira.[i] (TABORDA, 2011, p.13, grifo nosso).

Apresentaremos, na sequência, um  pequeno recorte histórico que revela de que forma foi enfrentada a associação atávica do violão com a música popular, que acarretou uma significativa demora para que o instrumento ocupasse o seu devido lugar no ambiente de concerto, história que parte do próprio desenvolvimento físico – muito recente – do instrumento.

Assim como hoje presenciamos a consolidação do “ressurgimento” do choro no âmbito da música popular, o violão erudito atravessou um processo de revitalização – iniciado por Francisco Tárrega (1852-1909)[i] e consumado por Andrés Segóvia (1893-1987) – que estabeleceu parâmetros para a era “moderna” do violão. Chamamos a atenção para o fato de Segóvia surgir como o primeiro violonista não compositor de uma longa linhagem de violonistas-compositores, que, assim sendo, tinham em seu olhar autoral um ponto de vista que estimulava o interesse pelo manancial musical presente nas práticas populares que abastecem historicamente o repertório de concerto através da atuação e “filtro” do autor. Assim, Segóvia inaugura a condição moderna de violonista-intérprete especialista, aprofundando-se nas múltiplas questões específicas do “tocar”, de tal maneira que alcança um reconhecimento único na história do instrumento.[i]

Em sua dissertação de mestrado intitulada “O ressurgimento do violão no século XX: Miguel Llobet, Emílio Pujol e Andrés Segóvia”, o Prof. Dr. Edelton Gloeden apresenta-nos um episódio interessante, no qual podemos apreciar um importante passo dado por Segóvia com relação à atuação de seu antecessor imediato, o violonista-compositor catalão Miguel Llobet (1878-1938). Segundo Gloeden (1996, p. 80), “Não só Llobet, mas todo o círculo violonístico de Barcelona, que era na sua maioria partidário de Tárrega, não admitiam a possibilidade de realizar um recital de violão em um espaços (maiores) como o Palau de Música”.

Miguel Llobet explica os motivos dessa impossibilidade:

LLOBET

Concerts hall are too large,

and guitar doesn’t have the power to carry sound from the stage to the entire hall.

The audience has to strain itself to hear us, listeners become impatient.[i]

Then too, we don’t have enough works of universal appeal

to satisfy the concert public and reviewers.

Motivos que são retrucados por Segóvia da seguinte maneira:

 

SEGOVIA

It wasn’t easy for me to accept that disparaging appraisal of the guitar’s potential;
but, if anything, those words reinforced my determination to seek the cooperation of serious composers and help enrich the repertoire of our much-neglected beautiful instrument.
Moreover, those words convinced me at last that Spain’s most notable luthiers had to be encouraged to search for means of increasing the volume of the guitar without electrical or artificial devices.[i]

 

Esse “maior volume”, decisivo para a carreira de Segóvia, foi atingido pelo instrumento fabricado por Manuel Ramirez (1869-1920). Em 1912, Segóvia “conhece o famoso construtor Manuel Ramirez que, impressionado com seu talento, presenteia-o com um de seus melhores instrumentos” (Gloeden, loc. cit.). Um violão que aprofunda as inovações apresentadas pelo Luthier Antonio Torres (1817-1892), construtor de instrumentos que “tornaram-se exemplos para quase todos os construtores do século XX”. Dudeque nos aponta um ponto de transformação fundamental para o desenvolvimento do instrumento:

A grande inovação destes instrumentos (fabricados por Antonio Torres) está no tampo harmônico. O uso do leque, um conjunto de tiras de madeira coladas na parte interior do tampo e que asseguram uma melhor distribuição dos harmônicos e um equilíbrio sonoro maior, tornou-se a grande inovação no desenvolvimento do instrumento. (DUDEQUE, 1994, p.78)

A nova configuração física do instrumento potencializou a excepcional condição técnico-mecânica e musical de Segóvia, contribuindo assim para a noite do concerto no Palau de la Música Catalana, que “aumentou ainda mais seu prestigio” e “o fez vislumbrar novas possibilidades para sua carreira[i] , além de perceber que era possível apresentar-se em espaços maiores.” (GLOEDEN, 1996, p. 90).

O projeto musical do mestre espanhol partiu de uma conjuntura adversa,  que demandava atuação direta, inclusive no  desenvolvimento físico do instrumento. Além disso, a imagem do violão na virada do século XIX para o XX, em sua profunda conexão com as práticas musicais “menores” da canção e da música popular, o distanciava do ambiente de concerto e do ensino exercido nas universidades.

Em um curto período de tempo, o quadro havia sido revertido e uma nova era do violão de concerto se iniciava a partir dos resultados alcançados. “O sucesso estrondoso de Segovia no pós-guerra e seus inúmeros LPs na década de 1950 fizeram surgir uma legião de admiradores e aficionados”[i]. O êxito de Segovia era resultante de uma estratégia, cumprida com disciplina e trabalho diário, regida pelos princípios elencados a seguir:

 

SEGOVIA

Desde a minha juventude, eu sonhava em tirar o violão do baixo nível artístico em que se  encontrava.
No começo, minhas ideias eram vagas e imprecisas,mas quando cresci e ele se tornou o meu interesse mais
intenso e veemente, minha decisão tornou-se mais firme e as intenções ganharam clareza.
Desde então, tenho dedicado minha vida a quatro tarefas essenciais:

1 Separar o violão do desleixado entretenimento popular.

2 Fornecer-lhe um repertório de qualidade com trabalhos de valor musical intrínseco, procedente da pena de compositores[i] acostumados a escrever para orquestra, piano, violino etc.

3 Propagar a beleza do violão entre o público de música seleta do mundo inteiro.

4 Influenciar as autoridades dos conservatórios, academias e universidades para incluírem o violão em seus currículos junto com o violino, o violoncelo, o piano etc.[i]

 

Passado um século do ressurgimento do violão, a transformação do cenário é nítida. O ambiente acadêmico é hoje um importante meio de propagação do violão de concerto[i], no qual as gerações sucessoras de Segovia – a partir daquela representada por John Williams e Julian Bream – desdobram seu legado.

 

  1. Paulinho da Viola no MPB Especial
  2. Cf. Cancioneiro Jobim – vol 5 – p.28, Jobim Music, 2001.

  3. Com o prenúncio e influência da obra de músicos como Garoto, Ari Barroso, Custódio Mesquita, entre outros.

  4. LINK com a ideia “(Baden) não é um compositor de harmonias feito Tom Jobim. Para Baden o que interessa é a melodia, a harmonia depende do que ele está pretendendo” apresentada no capítulo – 3.3 – a canção sem violão – na citação do depoimento de Turíbio Santos.

  5. Francisco Tárrega, considerado instaurador da “escola moderna” do violão, que – até por ser adepto do toque com a polpa dos dedos e não com as unhas na mão direita – não se apresentava em salas grandes. Tinha por hábito receber as pessoas para ouvi-lo na sala de sua própria casa em Barcelona, cidade que polarizava a cena musical da época.

  6. Segóvia atua – também de maneira intensa – tanto como arranjador de composições escritas para outros instrumentos, quanto na articulação junto a diferentes autores aos quais encomendava peças inéditas originais para violão. LINK com as segunda e terceira categorias apresentadas no fim do capítulo – 4.2 – o idioma do violão – no depoimento de Sérgio Assad.

  7. É interessante salientar que uma dinâmica semelhante a desse processo da “distorção” e do “rebaixamento (ou a contrapartida de ascensão)”, tão presente nos estudos que trabalham a fronteira entre a esfera da musica popular e a erudita, se apresenta também – de maneira inversa – quando a intelectualidade brasileira elege o lhes parecia ser mais “puro” na cultura negra: “os antropólogos, que foram responsáveis, em grande parte, pela glorificação dos cultos de origem yoruba, em detrimento dos de proveniência banto (…) classificaram os terreiros de suposta origem yorubá como sendo, de algum modo, mais “puros” que os de origem banto” (…) os que tinham absorvidos praticas de não-yorubá foram classificados como “impuros ou deturpados” .Ver FRY, Peter – Para Inglês Ver. “Feijoada e Soul Food: 25 anos depois”. In: ESTERCI, N., FRY, P. e GOLDENBERG, M. (orgs.) – Fazendo antropologia no Brasil. Rio de Janeiro, DP&A, 2001. Pág. 39.

  8. LINK com ideia: “O mundo é tão barulhento que esse baixo potencial sonoro do violão às vezes causa até um desconforto”, apresentada em – 4.3 – a sala, o banheiro e a praça – no depoimento de Marco Pereira.

  9.  Citado por Gloeden, 1996, loc. cit.

  10. “Segóvia chegou a se apresentar em salas como o Royal Festival Hall em Londres, que comporta 4000 espectadores.” (GLOEDEN, 1996, p. 90).

  11. KAIATH, Marcelo. Violão: pequena orquestra ou grande piano – 2009. Disponível em: http://violao-cancao.com/violao-pequena-orquestra-ou-grande-piano/.

  12. LINK com a terceira categoria apresentada no fim do capítulo em – 4.2 – o idioma do violão – na esquematização de Sérgio Assad.

  13. C. Usillos, Andrés Segóvia, Madrid, Direccion General de Bellas Artes s.d., p106 e 108, citado por Gloeden, E. 1996, P.88 E 89.

  14. LINK com a ideia “normalmente dentro da universidade se ensina violão clássico” apresentada em – 2.2 – no depoimento de Marco Pereira.

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