MATERIAIS COLABORATIVOS

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6.2 – o “Jongo” de Bellinati e o “Jongo do Tamandaré”

O violonista Paulo Bellinati é o compositor de Jongo, uma das peças de violão mais executadas no campo que se estende entre o violão popular e o de concerto.[i]

 

Apresentamos acima quatro compassos da versão solo e, abaixo, o mesmo trecho na versão duo.[i] [i]

 

 

SARAIVA

Admiro como você consegue escrever a mesma música para diferentes formações.
‘Jongo’, sua peça mais conhecida, existe para violão solo, duo e também para outras formações.
Ela nasceu como um solo? 

BELLINATI

Na verdade, não. Foi para um grupo instrumental.

SARAIVA

Assim com saxofone, nos moldes do Pau Brasil?
Então era como que uma canção, um tema?

BELLINATI

O Jongo começou a ser gestado para esse grupo instrumental,
quando estava morando na Suiça.
Era uma peça que eu vinha compondo na qual o violão tinha um papel importante.
Esse grupo, aliás, nunca conseguiu tocá-la.

A versão solo nasce quando já estou de volta no Brasil,
na época em que eu fazia as transcrições do Garoto,
talvez por isso tenha até alguma influência.
É só aí que eu elaboro a versão solo,[i]
e o ‘Pau Brasil’ grava a versão em grupo.

São músicas que demoraram anos para ficarem prontas.
Uma música desse porte e com essa quantidade de informação
leva anos para ficar do jeito que está.

SARAIVA

Foi um processo…

BELLINATI

É um processo. Um processo de evolução das músicas.
Eu mesmo fui me entendendo no mundo como violonista brasileiro.
Esse processo longo, de vida, de aprendizado, que vai forjando o compositor.
Você se transforma num compositor quando armazena um material interno grande
e a partir dele consegue dizer algo original.
Eu demorei muito para ser um compositor.

 

Para Bellinati, o processo de “evolução” das músicas se entrelaça com o “forjar” do compositor, a partir do “material interno” acumulado como violonista. Percurso no qual o tempo de maturação é respeitado como fator que determina o desenvolvimento, tanto do compositor quanto de sua obra.

Tom Jobim surge novamente como referência, agora ligado ao tempo dedicado à contínua formação do autor e à composição de suas canções mais elaboradas.

 

BELLINATI

Eu acho que a obra de Jobim jamais existiria sem todo o estudo que ele teve como arranjador.[i]
No piano dele tinha os prelúdios de Chopin, que todo dia ele se dedicava a ler.
Assim, manuseava essa riqueza que os impressionistas deixaram no final do romantismo.
Não dá para imaginar uma composição como ‘Luiza’ como uma canção simplesmente intuitiva.
Eu acho que ‘Luiza’, ‘Choro Bandido’, ‘Beatriz’
só existem porque alguém com muito estudo e muito “conhecimento” musical criou.
Pois é impossível aparecer esse tipo de densidade harmônico-melódica instantaneamente.
No caso de ‘Luiza’, especialmente, Jobim demorou muito tempo para compor.

SARAIVA

Elaborar…

BELLINATI

Ele ficou muitos meses elaborando, procurando as linhas melódicas, soluções.
Uma música muito rica, uma obra-prima, que não sai de um dia para o outro.

 

 00:00  Jongo (Paulo Bellinati)

Apresentamos a gravação do Jongo (Paulo Bellinati) por Duo Saraiva-Murray com participação especial do autor, realizada em maio de 2016 (posterior ao fechamento da dissertação portanto) no lançamento do CD Galope Duo Saraiva-Murray, produzido por Paulo Bellinati.

Nessa gravação há uma aproximação do universo de origem, que inspirou a peça escrita por Bellinati, por meio do entoar de uma toada oriunda, na realidade, do repertório do “Batuque” de Tietê/Capivari (SP) – gênero aparentado do Jongo.

 04:07 Namoro c’uma moça

Namoro c’uma moça
não é branca não é feia
Namoro c’uma moça
não é branca não é feia
Lenço branco na cabeça
duas conta na orelha
deu meia noite brinco dela relampeia
deu meia noite brinco dela relampeia[i]  

Parecem surgir dois tempos a serem considerados: o tempo que um compositor leva para se constituir, diante do(s) universo(s) no(s) qual(is) atua; e o que ele leva para compor uma nova obra. Ambos os períodos são relativos e dependem de um grande número de variáveis. Ainda assim, propomos, uma vez mais, o trabalho da polaridade determinada pela diferença entre as habilidades do composer e do songwriter.

Espera-se que o composer tenha uma educação formal, durante a qual aprenda técnicas de composição correntes na história do repertório de concerto, o que, com a prática, fará que ele escreva uma obra sem empregar um período muito grande de tempo. Já o songwriter, na hora de compor, é fulminante, podendo instantaneamente dar à luz uma canção duradoura, que, muitas vezes, já embala a madrugada da noite em que foi composta.[i] 

Uma exceção que ajuda a confirmar essa regra é a de Dorival Caymmi. Nas palavras de Sérgio Cabral: “Caymmi demora muito para compor uma música, dizem alguns dos seus amigos, […] mas quando conclui uma obra a música brasileira fica mais rica”.[i] Afinal, se Caymmi demorava, era em relação ao curto tempo que o songwriter costuma levar para compor uma canção no Brasil. O mesmo Caymmi é um dos autores que inauguram uma conexão natural entre o universo da canção popular urbana[i] – que se alimenta diretamente da música mundial, inclusive erudita – e a música folclórica brasileira.[i]

 

P.C. PINHEIRO

Você já viu isso de perto porque A Barca viajou a cada lugar buscando essas coisas.

Aí você tem tudo,
tem a dança,
tem o sentimento,
tem a emoção, tem o susto,
o espanto da criação.
Tem tudo isso nessas músicas.

 

No trabalho da polaridade entre o “fixo” e o “flexível”, a força criadora do momento se apresenta como um dos vértices imprescindíveis.

  1. LINK com a ideia central apresentada em – 6.3 – um problema antigo.

  2. LINK com a ideia “essa é uma forma de se enriquecer, que deve ter sido muito significativa para ele (Jobim)”, apresentado em – 2 – a procura do outro – no depoimento de João Bosco.

  3. LINK com a ideia “música de piano” apresentada em – 3 – canção: graus de ação do instrumento no processo criativo – no depoimento de Edu Lobo;

    LINK com a ideia “instrumento ativo na busca melódica” no mesmo sub-capítulo.

  4. LINK com a ideia “até que ponto o ‘conhecimento’ não atrapalha” apresentada em – 5.5 – “Boi de Mamão”– no depoimento de P.C. Pinheiro.

  5. É notável como a versão em duo se vale da maior liberdade mecânica para enfatizar o sentido “cantábile” do trecho. O que permite a inserção de uma nota explicitada pelo ligado que acontece na quinta corda do segundo violão da versão em duo. Trata-se de uma nota que, mesmo fazendo parte da melodia principal do trecho – que possivelmente seria letrada em uma eventual “versão canção” da obra –, na versão solo é omitida devido ao “limite” de digitação do instrumento, que sustenta simultaneamente o dedilhado de acompanhamento que acontece nas cordas primas. Tal “liberdade”, gerada pelo desmembramento da peça solo, possibilita uma maior expressividade da parte realizada também pelo primeiro violão, que, assim, ganha uma direcionalidade descendente (indicada pela seta) a partir da inserção do fá sustenido executado pelo dedo três na terceira corda (que segue para a nota ré no compasso 73 da partitura original).

     

  6. Vale ressaltar que no livro a conclusão desse capítulo se desenvolve partir de uma toada composta por Totonho do Jongo de Tamadaré, no qual o compasso em 6×8 é preponderante. Como no Jongo de Bellinati, e diferentemente no Jongo da Serrinha apresentado no capítulo anterior por João Bosco.

  7. LINK com ideia de “limites do violão” apresentada em – 1.1 – um violão que canta – no depoimento de Sérgio Assad.

  8. “A canção sai na hora, é isso o que importa. A naturalidade, a espontaneidade e a instantaneidade são valores preciosos ao cancionista. A rapidez e a eficácia do resgate da experiência provocam o efeito de inspiração”. Luiz Tatit em O cancionista, São Paulo: Edusp, 1996, p. 20.

     

  9. Sérgio Cabral, “O ritmo de Caymmi”, em: Dorival Caymmi, Dorival Caymmi: Songbook, Rio de Janeiro: Lumiar, 1994, p.16.

  10. uma pessoa que mudou minha vida foi o Dorival Caymmi” afirma João Bosco em trecho do depoimento apresentado em – 1.2 – um violão que se engrena na canção.

  11. “Vinculado ou não a empresas jornalísticas, o especialista – denominado “crítico” – maneja um saber a partir do qual se instaura um processo de divulgação sobre o compositor ou o artista. É a mesma função do folclorista, agora em bases industriais. A velha ‘ciência’ do folclore se apoia na separação entre cultura popular e cultura erudita. O corte é artificial porque no popular (conotado como simples, o fácil, o ingênuo) a erudição (conotada como o complicado e o complexo) também está presente. Mas o erudito folclorista precisa desta divisão para instituir seu discurso.” (Muniz Sodré, Samba, o dono do corpo, Rio de Janeiro: Mauad, 1998, p. 53).

  12. A peça foi gravada – na versão duo – até mesmo por John Williams, um dos ícones mundiais do violão de concerto de todos os tempos. Disponível abaixo e também em www.violao-cancao.com/referencias

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