4.5 – tocar junto
A conversa com João Bosco se desenvolve em torno de sua prática na “adaptação” do violão tocado “solo” – que nesse caso se refere à performance de “violão e voz”, com a melodia sendo entoada vocalmente – para um violão que favoreça o “compartilhamento”[i] da música com os demais músicos de sua banda e, em última instância, com o público. Descrição que lida diretamente com a ideia de “arranjo” e que visa alcançar a expectativa do público da “praça” que ali “espera um determinado resultado sonoro”.
SARAIVA
00:00 adaptação?
Me impressiono com a flexibilidade das estruturas que você desenvolve ao violão.
Eu percebo que quando você toca sozinho, você tem um arranjo,
e quando toca com a banda você consegue adaptar,
às vezes tirando um pouco o grave do polegar…
JOÃO BOSCO
É, é possível adaptar…
SARAIVA
Essencialmente é o mesmo gesto,[i]
mas parece que você alivia um pouco, em uma forma de ataque que já se transforma.
Como você comentaria isso?
JOÃO BOSCO
Eu acho “também” que você economiza um pouco o que você faz “solo”,
para que as outras pessoas possam participar da sua música.
Porque, se você fizer tudo o que faz no “solo”, não vai dar certo.
Quando você está sozinho, o violão vai preenchendo os espaços,
desde os graves até os agudos, como em uma orquestra.[i]
01:05 sozinho o violão preenche todos os espaços da orquestra
01:48 o compartilhar
02:10 Agnus Sei (João Bosco/Aldir Blanc)
Eu vou tocar uma música como ‘Agnus Sei’,
que foi a primeira música que eu gravei em 1972 de violão e voz. A música tem essa levada:
[toca apenas dois compassos da levada transcrita abaixo]
[já no terceiro demonstra a mencionada “flexibilidade”[i] da estrutura, que aceita também a seguinte variação]
Quando eu vou tocar isso com a banda, o baixista faz
[toca a linha que vinha tocando com seu polegar na levada “cheia”, aqui escrita em clave de fá correspondente ao baixo]
e eu faço
[toca o violão transcrito na partitura abaixo, enquanto canta a linha de baixo]
Aí o violão já cumpre outra função,
diferente da que tem quando eu toco sozinho. Pois quando eu toco sozinho, eu toco assim…
[executa de uma terceira maneira o que seria a mesma levada, agora se valendo de um ligado na quinta corda]
E assim acompanha seu canto de acordo com as possibilidades acumuladas ao longo do manuseio de mais de 40 anos dessa canção.
JOÃO BOSCO
Isso é um exemplo de como é que você compartilha a música.
Você deixa o baixista fazendo aquilo e vai fazer uma outra coisa.
Pode, por exemplo, fazer uma outra divisão
[desenvolve a informação da quiáltera (ou tercinas), que – presente no canto – interroga o compasso proposto pelo violão. As quiálteras se alternando entre dois blocos de acorde estabelecem um jogo polirrítmico de 3 contra 2]
JOÃO BOSCO
Você vai adornando,
e deixa a estrutura para o baixo, na levada dele com o batera.
Isso é “compartilhar uma música”.
Se eu for fazer a mesma coisa que ele,
nós vamos estar fazendo a mesma coisa juntos e não precisava,
Então tocar junto, compartilhar música, tem muito isso de você ir diminuindo a sua participação,
você faz você vai distribuindo aquilo que faz
Se em alguns casos – como no dessa música – o compositor-violonista adapta o violão para que a baixista desenvolva sua própria inflexão, é bastante comum – mesmo para ele – tocar com o baixista (recurso que é corriqueiro e inerente à linguagem da guitarra jazzística, por exemplo) “dobrando” o desenho da linha executada pelo polegar do violão “cheio”. Um exemplo é o violão de Corsário (João Bosco e Aldir Blanc)[i], que em todas as gravações realizadas por João Bosco apresentam o arranjo “cheio” do violão. Fato que ocorre tanto nas gravações e apresentações solo quanto nas que contam com o apoio da banda. Conforme podemos verificar na gravação ao vivo que conta com o já mencionado baixista Nico Assunção executando – e desenvolvendo muito – a ideia nascida no polegar da mão direita de João Bosco sem, ao menos aí, que este mudasse o arranjo a fim de que cada um “fizesse uma coisa”.
SARAIVA
Ocupando outros espaços
JOÃO BOSCO
Exatamente.
Trata-se de um processo substancialmente diferente do que se dá na tradição escrita ligada ao repertório erudito, no qual a importância da pormenorização em partitura de aspectos como o da articulação cresce na medida em que a formação se adensa, conforme nos conta Sérgio Assad.
ASSAD
00:00 eu achava até que o intérprete tinha que saber
A maioria das partituras para violão que eu li através da vida têm pouquíssima informação.
E eu achava até que o intérprete tinha que saber e que não precisa de tanta informação.[i]
Mas quando você vai tocar com outros músicos,
se você não tiver essa questão, digamos, da articulação marcada,
indicando o que você quer, fica complicado.
Porque não é você com você mesmo resolvendo os problemas.
É você junto com outras pessoas.
É significativo o contraste entre o que se apresenta para João Bosco como um processo de distribuição do som, que “só funciona tocando junto”, e o que surge para Sérgio Assad como uma situação musical difícil ou complicada, em ambiente de concerto, quando questões como a da articulação não estão devidamente assinaladas na partitura.
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LINK com a ideia “compartilhar música é muito diferente de você estar na sua sala” apresentada em – 4.3 – a sala, o banheiro e a praça – no depoimento de João Bosco.
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O exemplo apresentado por João Bosco é o de um gesto totalmente “readaptado”. Entretanto, podemos perceber que, em grande parte de suas músicas, as aberturas de acordes utilizados na mão esquerda reincidem da versão “solo” (ou “completa”) para a versão “em banda” (ou “adaptada”), cabendo nesses casos à mão direita não mais do que esse “aliviar” do gesto que abre espaço aos demais instrumentistas. Ao que João Bosco se refere apenas através do “também” da primeira linha de sua resposta a seguir.
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LINK com a ideia “As partituras editadas de músicas de Guinga não apresentam um detalhamento no plano das entidades expressivas da música” apresentada em – 6.5 – uma coisa poética dentro de uma música com suíngue.
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LINK com a ideia “(Berlioz) resume tudo, dizendo que o violão é uma ‘pequena orquestra’” apresentada em – 4.1 – violão-piano – no depoimento de Marco Pereira.
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LINK com a ideia “É difícil expressar um violão (como o de João Bosco ou Gilberto Gil) só nas figuras. O ideal, atualmente, é a filmagem” apresentada em – 6.1 – ver fazer: o “Jimbo no Jazz” – no depoimento de Luiz Tatit.