MATERIAIS COLABORATIVOS

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6.5 – uma coisa poética dentro de uma música com suingue

Dentre as várias passagens dos diálogos aqui apresentados, aponto o próximo momento como sendo de entrega especial de um entrevistado à proposta investigativa encampada. Momento em que Guinga, com quem já havia conversado algumas vezes sobre a questão, expõe sua busca franca pelo que chama em um primeiro momento de “uma certa beleza da música lenta”.

Aqui Guinga parte de seus próprios limites – os quais são intuitivamente incorporados na concepção conceitual de sua música – para o perseguir da ideia que acaba se traduzindo como “uma coisa poética dentro de uma música com suingue”[i]. Sua intenção parece ser a de integrar os estímulos rítmicos – que desde seu mais fértil berço, o africano, oferece ao mundo uma poesia própria – aos estímulos melódico-harmônicos – forjados ao longo da história da música europeia – que aos olhos do músico popular se associa ao “poético”[i].

 SARAIVA

Tem uma ideia muito presente entre quem estuda e teoriza a canção:
a de que ela, quando envolve intervalos amplos ou angulosos,
precisaria dessa coisa mais desacelerada

00:00 há canção “passional” em andamentos mais acelerados?[i]

 

GUINGA

01:07 eu tento mas as vezes não consigo 

[enquanto toca no violão Capital, composição própria.]

01:26 tem momentos em que ela precisa de uma “certa beleza da música lenta”

[Guinga elege o “lugar de peso” da composição, a ser atingido por uma flexibilização do pulso.]

01:45 dá pra se tocar assim mais livre ou mais…

[busca por duas vezes mais determinar a expressão, do exato mesmo ponto da composição, depois toca enfatizando caráter rítmico em um andamento mais acelerado]

02:02 por outro lado: show é show

[segue a execução assumindo uma andamento mais acelerado e a estabilidade rítmica como norma, inclusive no ponto onde anteriormente buscava “roubar”o tempo ]

SARAIVA

[começa a marcar o tempo com a boca para reforçar o caráter proposto]

 

GUINGA
Se eu conseguisse tocar assim o meu cachê era mais alto.
a verdade é essa [risos]
porque o “show” às vezes não combina tanto com a reflexão.

Entretenimento, diversão, alegria, euforia, “show”.
E a vida também precisa de “show”.

02:37 os dois lados

SARAIVA

Então tem um lado que é:

[“canta ritmicamente” o motivo de abertura da mesma composição]

GUINGA

É!

[os dois batucam junto com a boca a partir do material rítmico-melódico da composição]

SARAIVA

E num dado momento você sente então

[canta um dos rallentandos possíveis na finalização de uma das frases da composição]

 

Nesse momento Guinga volta a exemplificar de que forma a continuidade rítmica proporcionada pela batucada, que depende da estabilidade do “tempo”, pode ser relativizada através de intenções de “expressão musical”[i]. Assim, o músico nos apresenta sua franca busca do que poderia vir a ser, se não uma decisão composicional a ser grafada dentro da lógica da tradição escrita, um possível efeito a ser utilizado em uma próxima execução ao vivo, ou “versão” – que pode ser vocal ou instrumental – dessa sua “canção”.

 

GUINGA

02:50  uma coisa poética dentro de uma música com suingue.

[toca, uma vez mais, procurando ainda determinar como seria a expressão exata do “lugar de peso” eleito, e buscado logo no inicio desse vídeo em uma linguagem que, assim, se aproxima dos recursos habituais ao “violão de concerto”][i]

Não sei…
Seria assim:
uma coisa poética dentro de uma música com suingue.

 

Podemos observar nos intérpretes do repertório da música erudita o cultivo de uma clareza conceitual das frases melódicas, que revela o exato momento em que o apoio de determinadas notas proporciona uma resolução de maior leveza à frase diante do contexto harmônico. Para tanto, o intérprete toma uma liberdade metronômica que incide sobre o ritmo e, assim, o subordina à harmonia. Já para o músico popular a expressão rítmica promovida pela manutenção do “pulso” e pelo pacto em torno da palavra “suingue” [i] é soberana, e acaba por impor uma significativa diminuição da faixa de ação e, eventualmente, da própria utilização das entidades de expressão musical.[i]

Este projeto busca contribuir no sentido da consolidação de um olhar informado – atento e despido de preconceitos – à interação entre dois fluxos: o das práticas musicais de tradição oral, próprias da cultura negra e índígena; e o fluxo que opera na lógica da tradição escrita musical européia, que em muitos âmbitos se mostra restrita ao não conseguir expressar outros universos sonoros que não o próprio. O Brasil é um dos países que se encontra em melhor posição para a importante e complexa empreita de tal construção, em função de nossos próprios traços constitutivos (étnicos e culturais) favorecerem a fertilização livre e de mão dupla das informações musicais. [i]

  1. Segundo o dicionário Aurélio, suingue significa: “Elemento rítmico do jazz, de pulsação sincopada, e que caracteriza esse tipo de música” termo que, como vemos, foi totalmente incorporado pela música brasileira.

  2. LINK com a ideia “Paulinho Nogueira era muito mais ‘poético’, muito mais sutil e delicado (que Baden Powell)”, apresentada em – 4.4 – o vigor e a sutileza – no depoimento de Marco Pereira.

  3. LINK com a ideia “música se sustenta em qualquer uma das duas abordagens” apresentada em – 5.2 – uma pergunta para Brouwer.

  4. Pergunta se desenvolve em torno do conceito de canção “passional”, desenvolvido por Luiz Tatit “Ao investir na continuidade melódica, no prolongamento das vogais, o autor está modalizando todo o percurso da canção com o “ser” e com os estados passivos da paixão (é necessário o pleonasmo). Suas tensões internas são transferidas para uma emissão alongada das frequências e, por vezes, para as amplas oscilações de tessitura. Chamo esse processo de passionalização” em O CancionistaSão Paulo: Edusp, 1996, p. 22.

  5. LINK com “essa maneira um pouco mais ‘solta’, que em geral o músico erudito aplica quando toca” apresentada por Marco Pereira, em – 2.2 – Matrizes Rítmicas.

  6. Observação de Chico Saraiva apresentada em – 2.2 – matrizes rítmicas – “esse pacto está diretamente relacionado com o corpo em movimento”.

  7. Consideração de Chico Saraiva em – 2.2 – matrizes rítmicas – “A questão se revela na medida em que constatamos a significativa diferença entre uma abordagem rítmica que se alimenta da estabilidade do tempo, […] e outra, ligada à tradição escrita, que se desenvolve através da expressão regida justamente por dispositivos de variação do tempo”.

  8. Esse trânsito se dá entre esferas, aparentemente distantes entre si, como no caso da modinha, que transformou, já no século XIX, arte que se aprende em arte que se apreende, tal como atestou Mário de Andrade.

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