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5 – SANGUE MESTIÇO: CINCO SOLOS

…e assim vai se encerrar o conto de um cantor
com voz de pelourinho e ares de senhor
cantor atormentado herdeiro sarará
do nome do renome
de um feroz senhor de engenho
e das mandingas de um escravo
que no engenho enfeitiçou sinhá. [i]

Chico Buarque [i]

 

Como acontece em letra de canção, os depoimentos por vezes atingem uma expressão musical no jogo de eco, continuidade e ruptura que se estabelece entre seus elementos. Encontramos Paulo César Pinheiro, letrista há mais de 50 anos, em estado criativo no momento em que descreve seus ancestrais – o que possibilita ao músico, habituado a trabalhar em parceria com letristas, enxergar o trecho do depoimento que segue abaixo como letra de uma canção, das que já nascem com título:

SANGUE MESTIÇO

P. C. Pinheiro

Eu sou índio.
Eu sou direto
Minha vó, mãe de minha mãe, era uma índia Guarani,
aqui do litoral de Angra dos Reis.
Ali em Bracuí,
onde tem as usinas nucleares
tem uma tribo no mato,
é a tribo dela.

Eu cresci na casa dela.
Ela era pequinininha,
cabelo que vinha quase até a perna,
enrolado
fumava um cachimbo de barro,
com um bambú
que ela própria fazia.

Conhecia tudo de mato
Raiz, folha, fruto, flor
tudo
era meio feiticeira
andava resmungando pelos cantos

Eu cresci na casa dela
então eu tenho essa
raiz indígena muito forte

E tenho Negros
por parte de meu pai que era caboclo
Paraibano, cafuso
mistura de Negro com Índio
por isso que eu tenho isso forte em mim

 

SARAIVA

É de sangue mesmo

P.C. PINHEIRO

Meu sangue mestiço é poderoso!
É significativo.

00:00 e aí a música me vem dessa forma

01:11 me deixo levar

 

Vale ressaltar que essas palavras, que seriam um relato biográfico, apresentam temas e expressões que se fazem presentes em diversas das letras de músicas já escritas pelo poeta, o que revela um entrelaçamento entre vida e obra de P.C. Pinheiro que legitima[i] sua posição diante dos signos mobilizados em sua produção autoral. Essa legitimidade proporciona uma relação empírica com o processo criativo que se desenvolve com base no “não saber” ou em um saber “se deixar levar” pela oferta de cada momento. Assim, o poeta descreve-nos uma conduta segundo a qual mais se aceita e confia do que se constrói conscientemente uma solução poético-musical. Um poeta que apurou sua sensibilidade, desenvolvendo-a como instrumento de trabalho cotidiano ao longo de toda a carreira, e que tem no próprio processo criativo um de seus mais caros temas.

A seguir, temos “cinco solos” nos quais certos episódios ocorridos ao longo dos diálogos com cinco dos entrevistados são aprofundados a fim de apresentarmos também uma dimensão mais íntegra de cada um dos discursos.

  1. Paulo César Pinheiro – diante do teor e relevância de sua produção artística – é entrevistado chave para nosso debate sobre o entrelaçamento da musicalidade de herança branca, índia e negra no Brasil. Paulo César Pinheiro articula tais heranças com esse trabalho na medida em que tem o violonista Baden Powell – um dos focos desse livro – como parceiro inaugural de uma carreira que o levou a ser um dos principais poetas da canção brasileira. Em meio a esse quadro é notável que a voz de agentes profundamente ligados à cultura negra, mas que tem a pele relativamente clara (como é o caso de Paulo César Pinheiro), venham tendo sua  “legitimidade” interrogada no sentido da representatividade racial, a partir do movimento de ativismo negro que, como resultado de importantes conquistas em tais debates, reclama a voz de representantes que tragam a descendência direta do homem africano escravizado na cor de sua pele. Sabendo ser essa uma questão relacional, que depende do contexto, vale – ao menos para alguns contextos – mencionar que tanto Milton Nascimento quanto Gilberto Gil foram cogitados para constarem como entrevistados desse trabalho, e que não se fizeram aqui presentes fundamentalmente devido à grande demanda que têm, como artistas renomados que são. 

  2. É, a um só tempo, única e plural a voz – e os tormentos – que resultam do encontro de raças tal como se deu no Brasil, considerando as especificidades da ótica de “recepção” do nativo brasileiro, do tráfico na inserção subalterna imposta ao africano escravizado, e do sistema de colonização português. O caso narrado nesta letra, de um africano escravizado que concebe um filho com uma sinhá branca, é excepcional nessa combinação de gênero e raça para as estatísticas de nossa história, assim nos serve apenas como ilustração e estimulo ao exercício da constante reflexão a cerca dos “ideais de mistura e de não-racialismo” que são “tão concretos quanto os desejos pela pureza e pelo racismo”. Admitindo-se que, por um lado, “a conversão de símbolos étnicos em símbolos nacionais não apenas oculta uma situação de dominação racial mas torna muito mais difícil a tarefa de denunciá-la”, e por outro lado, “a libertação do indivíduo de qualquer determinação racial, que no Brasil se tornaram a ideologia oficial por muitos anos e que informam a visão de mundo de muitos brasileiros até hoje, são valores cada vez mais raros no mundo contemporâneo”, e que “vale a pena levar esses ideais a sério.”  Ver FRY, Peter – Para Inglês Ver. “Feijoada e Soul Food: 25 anos depois”. In: ESTERCI, N., FRY, P. e GOLDENBERG, M. (orgs.) – Fazendo antropologia no Brasil. Rio de Janeiro, DP&A, 2001. Pag. 43, 52, e 53.

  3. Para melodia de João Bosco.

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